terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

TEZ NEGRA | MICHELI LAVIOLA




A tez, negra e repousante da noite,  reavivou meu metabolismo humano. Não possuo a olho nu essa bela cor de ancestrais imponentes e redentores de sabedoria. É preciso olhar a minha árvore genealógica sanguínea e investigar a melanina que se encontra oculta por entre os meus genes. Sei que se encontra em algum lugar: está na minha genealogia da alma. Sou negra de alma! Negra da noite; negra da pele de pantera; negra da pérola rara; amo o samba de raiz negra! Sou toda negra! Que bênção! 

Alma negra nasceu liberta! Alma dos grandes guerreiros africanos que lutaram até o fim de sua geração. A minha alma é toda negra e sem correntes. Guerreiros nascem sem grilhões! Não há grilhões de ferro no ventre materno! Há alma feita de cordão umbilical que protege e, por amar, deixa que os pulmões do rebento guerreiro tomem a propulsão da vida!

Nascemos livres de corpo e de alma! Viva minha alma negra!!!

sábado, 18 de fevereiro de 2017

CARNAVAL | MICHELI LAVIOLA



  As noites cariocas regadas de champanhe, serpentinas e confetes relembram a época áurea da década de 1920. O momento era único. As cores das fantasias e das peles se harmonizavam, formando-se uma única cor de alegria pelas ruas fluminenses. As marchinhas eram entoadas como hinos nacionais sem o formalismo patriótico das escolas e das Forças Armadas.
   As marchinhas continuavam a tocar. Outras foram censuradas. A censura, entretanto, teimava em seduzir os ouvidos que percorriam pelas ruas do Centro da Cidade. Nas noites proibidas, a censura era anistiada pela voz do povo que se perpetuava pelas consciências e não pelas leis.

   Um pierrot dançou, cantou, amou ...uma colombina que dançou, cantou, amou... um  arlequim que  dançou, cantou e não amou. Ciclos quebrados. E a noite carioca se multiplicou pelas ruas, pelos bairros, por outras cidades... 
   O amor nasceu em alguns corações, em outros foi passageiro como o bloco nas ruas; já para outros, nunca existiu, mas, mesmo assim, os hinos do batuque africano-carioca se imortalizaram pelos foliões. Eis o mistério carnavalesco! Unem-se pessoas, histórias, vidas em pequenos momentos e todos se tornam uma única história no fragmento do tempo.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

INEXISTÊNCIA| Micheli Laviola



Não saberia ter a inteligência dos monges
Nem a liberdade das asas de um pássaro em pleno voo. Não encarnei nessas vidas.

Estou na vida de uma mulher que teima em descobrir o sentido de sua inexistência.
Por que eu não existo?

Se eu não existisse, ninguém teria o prazer de ouvir minha bela voz, de contemplar meus olhos brilhantes como o reflexo lunar nas águas marinhas, alimentar- se de meu sorriso apimentado de prazer e contagiar-se com minha alegria temperada pelas palavras de amor.

Meu ardor de mulher é um ensinamento de ser única em meio a multidão. É ser sábia de si mesma. Sem autorização para ser eu.

Sou única posto
Que sou chama e ardo,
Mas não machuco
E, sim, incendeio as veias pulsantes!

Como seria se não conhecessem a cor dos meus cabelos bronzeados pelo sol e ondulados pelas ondas do mar? Sofreriam mais que torcedor perdendo a Copa do Mundo!

Sou única
Posto que estou aqui
Por mais motivos
Que, até o último dia de minha respiração,
Saberei contar ao meu próprio ser.

Decerto que minha inexistência seria um Pecado!

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

ÍCARO SONHADOR | Micheli Laviola

           
           
A luz transpassava as penas de uma das asas que se estendia contra o sol em um momento de apreciação ao olhá-la. Ícaro admirava a sensação de ser livre com esse ritual antes de abrir suas asas com dedos maiores que os seus terrestres. Cada detalhe das asas era um recado a Zeus de que poderia ser o que quisesse. O sonho era belo, inovador, mágico...
            O bater das asas jorrava ventos por todos os lados. Era um novo ser. Balançava folhas, galhos, árvores, seres menores, com a ventania das asas até que Ícaro correu o mais rápido que pôde naquela montanha e se jogou ao abismo de céus infinitos. Caiu. Bateram as asas com mais avidez. E o voo foi um suspiro de alívio e contentamento. Ícaro voou por toda a Grécia. Muitos imaginaram ser Eros. Outros, um novo filho de Hera. Ícaro continuava a voar sem preocupações. Era, finalmente, livre da terra que o puxava para a gravidade sem deixá-lo voar como seus irmãos pássaros.
         A liberdade era vista de todo o Olimpo. Alguns deuses contemplavam a inteligência do humano. Outros, diziam ser uma afronta aos desígnios de Zeus. O que importava a opinião divina naquele momento? Para Ícaro, nada. Voava cada vez mais alto. Suas asas começaram a derreter. Ícaro caiu. E um vento soprou devagar, com benevolência, levando aquele homem ao mar. Ícaro perdeu suas asas de cera. A natureza amou as “asas humanas”. Ícaro sobreviveu. E o sonho da liberdade tornou-se imortal.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

REAL | Micheli Laviola

           
           
Começar de novo é sempre um parágrafo iniciado com direito a vírgulas para uma leve parada em cada suspiro e transpiração da vida. Ler sem pontuação não transmite as dores, os amores, as raivas, os sentimentos e pensamentos. Tudo se torna obscuro. Não há entendimento.
           
           
Uma exclamação para uma surpresa, para uma alegria que contagia o leitor na jornada das letras. Uma interrogação faz a massa encefálica criar novas conexões entre os neurotransmissores. Os parênteses explicam uma palavra com difícil compreensão, abrindo-se novos horizontes na semântica do vocabulário do ilustre leitor.
           
           
As linhas de um cenário, descrevendo onde se encontram cada objeto ou pessoa em determinado lugar, transportam o “ser leitor” ao próprio lugar. Torna-se um lugar real, com situações reais e com um leitor real.
           
           
Um dia sonhei que minhas palavras, somadas com a pontuação que lhe dão vida , tornavam-se reais para leitores reais. Eu me senti real. Sonhos são lindos, mas sonhos reais são sublimes.
           
           
Meu interior possui portas com adereços entalhados pelos artesãos de grande sensibilidade. São portas antigas, mas fortes e atemporais. Criadas em minha alma a partir de meu nascimento mundano. Nasci, estou crescendo, não envelheço, não há envelhecimento para as almas reais.


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

REDEMOINHO | Micheli Laviola

           
           
Sonhei que estava em meio a um redemoinho de palavras que me confundiam com a sua linguagem confusa,  turva, vertiginosa. O olho do redemoinho inclinava-se para o céu com uma pequena fresta de luz, onde se podia ver um rasgo do azul celestial. Tentei me amparar nesse miolo de salvação. A tormenta persistia em me engolir com seus ventos da  ignorância, da intolerância,  do ódio, das palavras inexpressiva e sem poesia. Algumas vezes pedaços de mim foram arrancados e levados pelas rajadas eólicas. Até que, finalmente,  consegui que aquela luz saída do olho do redemoinho fosse mais intenso e brilhante, diminuindo, por um milagre, as rajadas violentas daquele furacão de palavras turvas. 
           
           
Com isso, os ventos foram mais dóceis e com uma linguagem harmônica com a semântica e a sintaxe. Trouxe o frescor do tom poético  alimentando o meu vocabulário outrora profano.  Eu me senti santificada com a luz que agora abençoava as palavras saídas de minha boca para  transmitir poesia aos necessitados de amor e de arte na alma.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

O MENINO DOS PÉS SUJOS | Micheli Laviola

           
           
Eu me entristeci olhando aqueles pés descalços, unhas sujas e cortadas de forma assimétrica. Estavam ásperos e um deles tentava retirar a sujeira incrustada no outro pé. Era inútil. A falta d’água por meses, naquele vilarejo do sertão cearense, impedia a concretização do intento.
           
           
Mesmo naquela situação dos pobres pés, o dono destes encontrou um punhado de água barrenta no quintal seco de sua casa de pau a pique. Um sorriso escandaloso de alegria espalhou-se mais rápido do que pólvora acesa. Os pés de todos os familiares pulavam em meio àquela terra seca. As poeiras voavam felizes! A água era pouca. Cada um, que morava naquela casa, bebeu em pequenos goles aquela água barrenta. Era como se a água tivesse abençoado a terra através da mistura dos elementos (terra e água).
           
           
Eu, um forasteiro, que estava de passagem e já sem água, experimentei por horas o que aqueles pés passaram por anos. O menino dos pés (descobridor do punhado de água abençoada) apresentou-me o pouco que havia restado da água após ter distribuído para seus familiares. Fiquei atônito. Não esperava que sobrasse algo. Era tão pouca água e tantos sedentos...
           
           
Aquele gesto fez nascer água de meus olhos: outra bênção que uniu os elementos da natureza com o amor. Não tive outra reação a não ser me banhar daquele líquido abençoado. Caso me negasse, seria um sacrilégio para aqueles pés sujos, mas puros de espírito.


segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

RIO AZUL | Micheli Laviola

           
           
Mergulhei em direção ao fundo de um rio. E fiquei de pé lá embaixo com os cabelos navegando por entre as correntezas e abrindo uma juba ao redor de minha cabeça ou querendo imitar os raios solares . Inerte continuei observando a vida no rio, até que minha musculatura respiratória teimava em expelir o ar de meus pulmões. Insisti em permanecer nas profundezas azuis do rio. A luta era inevitável entre o corpo e a alma. A alma ansiava pelo azul da tranquilidade eterna. A paz era sedutora como as sereias cantando para os marinheiros. Entretanto, o corpo teve vida própria e diferente do consciente: subiu em busca do oxigênio dos céus. Ao encontrar o sol queimando a face e a brisa acariciando os poros da pele, chorei ao ponto de inundar meu coração com as águas azuis do rio e descobri que já possuo o meu rio de paz eterna dentro de mim.