domingo, 27 de agosto de 2017

Sentidos| Micheli Laviola



Fui precursora de mim mesma.  Iniciei um traço de minha personalidade em meus olhos castanhos escuros jabuticabanos.  Eram tão penetrantes que senti meu corpo entorpecido por eles. Minha pesquisa continuou nesses dois círculos oculares.  Vi pedaços de meu passado. Alguns tinham o odor de leite fervendo, derramando-se pelo fogão  e minha mãe tentando alcançá -lo em vão.  Outras vezes a voz do rádio emitindo os grunhidos de um aspirante a cantor. Os castanhos de meus olhos iniciavam meu passado como um mundo que não parava de se contorcer em si mesmo. O mundo era o mesmo. As palavras, as mesmas.  Sonhos eternos.  Até que os castanhos ficaram mais claros com a luz da manhã que ousava se refletir neles. Veio o futuro possível com um sol nascendo de dentro do ventre marinho . Havia uma liberdade em ser qualquer coisa e em qualquer tempo.  Vida em minha carne .  Quando a luz do dia havia se apagado dando lugar à densidade da noite,  o presente surgiu por entre frestas do meu castanho.  E percebi que estava respirando e pronta para alcançar o nascimento do meu sol futuro.

Correnteza| Micheli Laviola


Não tenho mais forças pra caminhar contra essa correnteza que me leva às areias flamejantes. Queria continuar caminhando por entre as águas frias, tentando chegar ao clímax do congelamento corporal e perpetuando meu corpo a uma vida jovem. Eu pertenceria ao mar e, ele, a mim. Sem medos, sem receios. Faria parte da natureza, mas o teimoso do mar insiste que eu queime pelas areias de um deserto de almas. Quer que minha pele envelheça e eu suma por entre o horizonte das dunas. Ali meu corpo lateja em sofrimento.  Ali meu corpo não é jovem. Faria parte de nada. O mar insiste que eu fique nas areias cortantes. Meus pés doem. Tentam procurar um lastro de água beijada na areia. Aliviam-se as dores.  Fico olhando o mar como uma fantasia inalcançada. Uma criança iria embora  pela impaciência inerente à infância,  entretanto finquei minhas raízes naquele limbo entre as águas e a areia. Era como se esperasse meu momento chegar e ser eterna e vívida como o mar, navegando por entre suas ondas em liberdade nascida com o mundo.
Micheli Laviola.